JUNTAMENTZ 

A imagem que representa o dispositivo que representa a imagem.

2006-2007


O projeto JUNTAMENTZ1 foi por mim realizado entre os anos de 2006 e 2007, envolvendo comunidades pomeranas existentes no estado do Espírito Santo. Este projeto pode ser incluído tanto na área de Audio-Visual como na de Arte, na qual se encontra relacionado de maneira mais estrita com as práticas site-specific2 (community based art).

JUNTAMENTZ parte da chave “representação” na produção de um discurso ou ponto de vista do autor diante da constituição da obra audio-visual. O projeto analisado fez parte de uma pesquisa iniciada por mim em 2006, cadastrada junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), onde leciono as disciplinas de Espacialidades para Arte e Arquitetura. Trabalharam nele Rafael de Paula Corrêa e Vinicius Martins Gonzaga, alunos de iniciação científica por mim orientados.

Todo o acesso às comunidades residentes neste Estado e às questões pertinentes aos pomeranos na pesquisa foi mediado por Irleci Klietzke e Carla Siebert. As duas colaboradoras, ambas de origem pomerana, vivem hoje fora das comunidades e eram, então, estudantes de Artes Plásticas da UFES.

O resultado visual desta pesquisa foram dois vídeos – “Silent Film: in search of a pomeran house” e “RING” que podem ser considerados como excertos-fílmicos3 (nem documentário e nem ficção), são também algo que se complementa pela pesquisa teórica, são parte dela. Os vídeos não geram uma narrativa linear e confundem questões da memória (individual e coletiva) e História. O que se apresenta nas imagens e nos textos de um dos vídeos é parte de uma pesquisa sobre a tipologia das casas pomeranas e nos textos e áudio do outro vídeo, a língua pomerana.

O projeto também foi exibido relacionando-se com o “cinema de exposição”, ou “vídeo de exposição”, na Galeria Casa Triângulo em São Paulo em 2006 e no WARC em Toronto/ Canadá em janeiro de 2008.

As possibilidades de atualizações das práticas site-specific em Arte das décadas de 1960-1970, através da pesquisa, dão-se pela construção de um campo teórico que pretende abarcar os problemas pensados por estas práticas (essencialmente as questões de documentação como obra e de seus deslocamentos para outros contextos) como também das relações entre estas e o ‘cinema de exposição’. As práticas artísticas atuais, realizadas em toda sorte de mídias, baseadas em modelos discursivos, tornam-se na maioria das vezes também práticas transitivas, por se tratar de projetos em que os “documentos-obras”, deslocados de seu “lugar de origem”, passam a ser facilmente transportáveis para diversos contextos e engendram, por isso, diversas formas de discurso.

Por este projeto se constituir como campo de investigação entre o cinema, o site-specific (relações espaciais e discursivas), e o ‘cinema de exposição’ (espacialidade do formato fílmico), intensifiquei aspectos da montagem (planos a partir do fotográfico postos em sequência estabelecendo tempos de espectação e uso das legendas como operação da própria linguagem do filme, questionando o lugar de opacidade da tradução ou mesmo do texto impresso nas legendas na forma fílmica, caso do Silent Film).


1JUNTAMENTZ significa trabalho conjunto ou mutirão na lingua pomerana. Os Pomeranos são um grupo diaspórico Europeu que chegou à América do Sul no século 19.
2Este projeto foi alimentado também pelo texto escrito por mim e por Jorge Menna Barreto intitulado: Especificidade e (In)traduzibilidade, apresentado como conferência/ comunicação no 23o Encontro ANPAP, Brasília/ DF. UnB. 2004.
3Esse termo refere-se ao utilizado por Ismail Xavier em “O olhar e a voz: A narração multifocal do cinema e a cifra em São Bernardo”. Xavier ao analisar o filme São Bernardo utiliza o termo “excerto de estilo documentário” como uma colagem ou tableau dentro do filme, como uma reflexão sobre a historicidade das imagens e das palavras, a representação da representação no cinema. No caso do projeto JUNTAMENTZ, a idéia de excerto dá-se em relação ao trabalho “documental” site-specific da pesquisa, transformado em vídeo que problematiza questões de imagem e representação.




Instalação “RING”. Casa Triângulo. São Paulo, Brasil. 2006.



A voz como ponto de vista

Um dos excertos fílmicos, o “Silent Film: in search of a pomeran house” apresentado como parte do projeto JUNTAMENTZ, trata da construção de uma narrativa fragmentada, em que as “falas” de Irleci e Carla se estabelecem pelas legendas como uma forma de voz off.

Para captar estas imagens, tentei chegar o mais próximo que pude das casas sem ser vista, diferente das entrevistas que fiz com alguns pomeranos que residiam nas comunidades. Transformei as imagens fotográficas em filme, colocando-as em sequência. As imagens e legendas que aparecem nesta seqüência têm durações diferentes para a leitura das legendas, que indicam o que a imagem “mostra” ou o que ela “representa”, mas que também criam a temporalidade possível para a percepção de que existe um “sujeito oculto” dirigindo aquele olhar e aquele discurso sobre as imagens.

Optei por não apresentar imagens dos próprios pomeranos, pois o projeto foi realizado no sentido de problematizar toda esta operação de trabalho em campo e intervençõessite-specific ou community-based-art. Portanto, as relações interventivas acontecem nas imagens.

As legendas do ‘Silent Film’ são as falas de Irleci Klitzk e Carla Siebert, são suas próprias leituras sobre as casas, e muitas das descrições são “invisíveis” ao espectador. Nestes textos, elas descrevem porque a casa de cada imagem é ou não pomerana ou porque poderia ser. Portanto, existem situações de dúvida. As imagens, assim como os textos, pouco revelam do que é “ser pomerano”. O “cercamento” nunca é realizado por completo.

No caso de JUNTAMENTZ, o que não se vê nas imagens, o que está apenas nas legendas, nas falas de Irleci e Carla, são questões verdadeiras para elas. A relação destes relatos com a ficção delas se dá pelo que é imaginado pelo espectador das imagens.

A arquitetura indicada como pomerana nas imagens do ‘Silent Film’ também é muito parecida com a das casas de roça brasileiras, embora algumas das casas tenham elementos mais europeus. Portanto, estas identificações realizadas por Irleci e Carla são também “uma forma de ficção”, porque nem elas mesmas poderiam precisar o que seria a tipologia da casa pomerana, por se tratar de uma migração tão antiga.

Em ‘Ring’ assiste-se a um filme sem imagens – apenas legendado. O som, a voz off4, são falas em pomerano, novamente as vozes de Irleci e Carla. O texto inicialmente foi traduzido por elas do pomerano para o português, para em seguida ser legendado em inglês. O que se ouve no filme e também se lê nas legendas é o refrão falado de um jogo infantil de passa-anel, um jogo comum tanto nesta comunidade como em outras. O texto fala de um anel que tem que ir de uma mão para outra, que tem que migrar sem ser visto. As legendas e o voz over foram montados em looping, realizando a constate repetição deste jogo, que só se esgota quando o terceiro participante, que seria o espectador, desiste e retira o headfone, ou seja, sai do trabalho, ou mesmo nem entra nele.

4A voz off no cinema refere-se ao personagem que narra ou fala, mas que não aparece em cena. No caso deste vídeo, as personagens e suas vozes estão nas legendas. Isto é problematizado no Silent film: in search of a pomeran house, especialmente por ser um filme mudo. Em verdade, estes usos da linguagem (voz off, legendas) problematizam o lugar de fala das personagens e da idéia de documentário e sua transparência neste projeto.


Instalação “Silent Film: in search of a pomeran house”. WARC. Toronto/ Canadá. 2008. Integrava a exposição coletiva Translation/ Traduções.

Stills do vídeo ou excerto-fílmico, “Silent Film: in search of a pomeran house” 2008. Vídeo colorido com duração de 7’ em looping.



O pomerano é uma língua oral, e a escrita está sendo formalizada apenas atualmente. Existe aqui uma coincidência, pois Ring em pomerano se escreve como no inglês, questão curiosa ao problema sonoro e à tradução, neste projeto.

O sentido de comunidade é neste projeto também problematizado, porque Irleci e Carla, ao saírem destas comunidades para viver na cidade, também têm um certo olhar “estrangeiro” sobre aquelas. Algumas das falas sobre as casas referem-se mais à memória, ou à projeção dos espaços descritos. Naturalmente, a idéia de comunidade é sempre uma representação, no sentido de “simplificação das complexidades de um grupo”.

No projeto JUNTAMENTZ existe uma “pseudo-sincronia de canais”, entre imagem e legenda (problematizadas pela questão da tradução) ou entre som (voz) e legenda (problematizados pelo que não se vê nas imagens, mas está nas falas). Portanto, em JUNTAMENTZ, a diegese se relaciona à problematização do termo, na medida em que trabalhei com a idéia de narração pelo uso de legendas, embaralhando as vozes das personagens, como se fossem uma só, pois não há nenhum discernimento daquilo que é dito por Irleci ou por Carla. O Texto geral cria “uma voz” que fala no Silent Film.
No filme RING, a narração ocorre pelo efeito do uso da legenda como função tradutora da língua e o som ou vozes, embora distintas (Irleci e Carla), operam pela repetição das mesmas falas, como se pela repetição constante fosse possível apreender algo da imagem que ocorre na cena, subsumida ao texto e à voz.

Instalação “RING”. WARC. Toronto/ Canadá. 2008. Integrava a exposição coletiva Translation/ Traduções.

O desdobramento do projeto JUNTAMENTZ ocorreu, como já mencionado, em duas diferentes exposições. Os filmes foram exibidos em looping com headfonespara ouvir e um mobiliário próprio da instalação. Na exposição individual que realizei na Galeria Casa Triângulo em São Paulo, apresentei apenas o vídeo “RING”em tela de plasma quase no chão, com outros trabalhos. Junto ao aparelho de plasma instalei como mobiliário um Lismate, uma espécie de tapete de taboa trançada que é usado nas comunidades pomeranas, nas casas, para agregar pessoas numa sala de estar. O mesmo “mobiliário” pode ser utilizado para deitar-se. Na constituição das casas pomeranas que visitei, pude perceber que a sala de estar é o maior ambiente, porque agrega os familiares e serve como salão para festas e casamentos.

Na WARC, em Toronto, foram apresentados os dois vídeos “RING” e “Silent Film : in search of a pomeran house”, na exposição intitulada Translation/ Traduções5. Os vídeos foram apresentados também em telas de plasma. Apenas “RING” possuía um headfone e mobiliário puff para sentar. “Silent Film” pedia uma audiência em pé, uma audiência que pudesse se deter nas imagens e suas legendas. Junto aos dois excertos, apresentei um texto sobre o projeto JUNTAMENTZ que foi reproduzido pela galeria WARC e podia ser levado consigo pela audiência interessada.

5A exposição Translation/ Traduções, realizada na WARC em Toronto em 2008, foi curada por Daniela Castro e Emilie Chhangur.

︎

CARGO COLLECTIVE, INC. LOS ANGELES, CALIF. 90039—3414