“o visitante, o invasor”

Exposição individual, 2017
Galeria Marília Razuk



O Porão - Intervenção na casa de Mario de Andrade. Foto: Mauro Restiffe.

O Porão (filme) 
Still do video O Porão, video colorido, 7', 2017.

Wind Fence (filme)
Wind Fence (maquete)
Still do video Wind Fence, video colorido, maquete e minerio de ferro, 2017.

 

Fotos: Edouard Fraipont


“Os quartos são modernos, suntuosos, desagradáveis. Há quinze apartamentos. No meu, fiz uma obra devastadora, que deu pouco resultado. Fiquei sem quadros — de Picasso —, nem cristais fumês, nem forrações de marcas valiosas, mas vivi numa ruína incômoda.” Adolfo Bioy Casares, em A Invenção de Morel.


A arte em relação à arquitetura, e vice-versa, a condição dicotômica do espaço construído em uso contínuo e, por fim, a forma como se ocupa a galeria e dela se toma conta são a espinha dorsal do que Raquel Garbelotti (Dracena, SP, Brasil, 1973) entrega aqui ao público. Se de partida há um processo de impregnação e contaminação do ambiente expositivo pelos dispositivos fílmicos e objetos construtivos da artista, por outro lado há a consciência de ocupação da ideia de lugar, habitat ou território, esses constantemente reiterados. Seu processo de trabalho seria, portanto, quase como um território ocupado por outros territórios, que se confundem na relação espaço-temporal, podendo estabelecer zonas de contatos, conflitos e negociações. Em um só tempo, tem-se a “ruína incômoda” — poeticamente descrita por Casares — fora da sombra, descortinada e vasculhada.

Tais considerações acerca do repertório investigativo de Raquel se fazem pertinentes, dada a divisão clara da exposição em três núcleos intercambiáveis de trabalhos. Em primeiro plano, encontram-se os já reconhecidos Cobogós (2017), que delineiam a chegada da exposição. Fabricados em cimento, subvertidos para a escala de 1:5 e aplicados transversalmente aos planos verticais das paredes, esses objetos tridimensionais expansíveis são destituídos de seu valor arquitetônico e funcional, transmutando-se em uma realidade incômoda,  intrusa e não objetiva. Se são fragmentos constitutivos e simbólicos de um modernismo brasileiro e com claro lugar na história hegemônica de nossa arquitetura e urbanidade, são também, em última instância, representações ideológicas de um projeto moderno forjado.

Num certo sentido, a artista parece clamar por um lugar de operação de seu trabalho que Dan Graham já havia trazido à tona em seu antológico texto A arte em relação à arquitetura (1979). Assim como ele, quase quarenta anos depois, Raquel questiona a razão cultural do binômio “arte/arquitetura” modernista, em face da urgência de produzir outras formas — híbridas, livres e francamente democráticas. É, enfim, a ruína incômoda, outrora escamoteada, mas agora mantida à luz, visitada, invadida e continuamente transformada.

Derivam daí os dois outros núcleos expositivos. O primeiro acontece em torno do vídeo instalado Wind Fence (2016-2017), no qual um ambiente, aparentemente limpo e asséptico, é tomado continuamente pela invasão de um pó escuro que impregna e contamina. Em contraposição, é disposta ao espectador a maquete desse mesmo ambiente, na qual o pó — identificado como minério — faz submergir o chão da casa. Se no vídeo emloop não fica claro o domínio territorial, na maquete a identificação de um traçado em planta define o espaço arquitetônico. Essa construção arquitetônica mimetizada, por sua vez, nada mais é do que o apartamento da artista em Vitória (ES), sujeito às condições de um habitat específico, e que agora se visita.

Mas que território é esse? É a região em que o poder público e privado no Brasil estabeleceu uma estável parceria em nome do desenvolvimento e do progresso, na forma parcialmente acabada de um projeto de modernidade. É em Vitória que a indústria pesada recebe a extração mineral das redondezas, qualificando-a para a produção industrial em larga escala. E são nas casas das pessoas que por lá vivem que a face invisível desse movimento ganha forma e valor de matéria: o chão está impregnado por refugos de minério. Essa é uma das marcas indeléveis desse projeto de país, no lugar onde supostamente os processos foram vitoriosos.

O segundo núcleo, demarcado pelo vídeo O Porão (2008-2017), desloca a discussão para um outro espaço que foi habitado, mas que, na época, manteve-se inacessível por ordem e vontade expressa do habitante. Numa relação espaço-temporal elástica, a artista propõe uma operação investigativa e artística sutil e complexa. Ao adentrar o espaço desse porão — parte da casa do notório modernista Mário de Andrade —, Raquel Garbelotti intervém no ambiente, pintando-o de preto. Como se quisesse protegê-lo e resguardá-lo, sua ação acaba por reiterar elementos que caracterizam o espaço construído e confinado: é a entrada de luz que demarca o espaço; são as sombras que se movimentam ao longo do dia; são o ar e o som que percorrem o lugar ao se abrirem as vedações.

Para sublinhar e destacar esse abrigo, a artista convida o artista Mauro Restiffe a fotografar o que do espaço se apresenta, ainda que não se consiga uma apreensão totalizadora. Da sobreposição dessas imagens, a artista reconstrói em vídeo o ambiente circunscrito ao dia da visita. Esse recinto, aprisionado no tempo, é materializado em maquete, feita em modelagem de impressão 3D. Assim como no caso anterior, a dicotomia entre filme e maquete estabelece um jogo semântico para o visitante. Esses modelos são, no meu ver, relicários de uma realidade aprisionada e de um vir a ser. Historicamente, é estratégia semelhante ao que Hélio Oiticica enunciava por maquete, quando da realização do seu projeto Cães de Caça, em 1961.

Adiante, identifica-se um vasto repertório cinematográfico de espaços análogos aos apontados nos vídeos. A produção audiovisual em ficção é pródiga em revelar situações de ambiguidade em que são protagonizadas visitas e invasões, tanto pelas narrativas sugeridas e tramas construídas, como pela semelhança imagética com o que a artista diagnostica em filme e maquete. Na há como não lembrar das tensões espacializadas por Roman Polanski em sua trilogia do apartamento (Repulsa ao Sexo; O Bebê de Rosemary e O Inquilino), ou mesmo em seu filme seminal, Cul-de-Sac. Afinal, o caráter dúbio entre as entidades visitante e invasor é questão plástica e retórica muito cara à artista, e ele só acontece pela revelação de um espaço contingente, de um abrigo falsamente assegurado e protegido: o que seria, mais uma vez, a ruína incômoda do espaço construído e habitado, a mesma aventada em diário pelo protagonista de Morel.
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